terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Sem voz, nem vez

Estas são as mulheres do meu país.
Verdadeiras heroínas, entre milhares, a quem Portugal tanto deve e para as quais só há esquecimento e nenhuma gratidão.
  • Mária, analfabeta, 80 anos, mãe de dez filhos, serviram na guerra, produzem riqueza em tempo de paz.
  • Maria, 73 anos, viúva, vive só, filha e mulher de emigrantes. Do pai conhece o nome quando escrevia e lia as cartas, ainda menina, a sua mãe, vindas do outro lado do Atlântico.
  • Pureza, 83 anos, solteira, filha de pai emigrante, vive só. Trabalhou 71 anos, amou meninas e meninos de outras mães, embalou-os no choro, acarinhou-os na birra, afagou-os na solidão deles e dela. Os meninos e meninas que amou – se houvesse gratidão – não permitiriam que Pureza não soubesse escrever e ler o seu nome.
  • Rosa, 40 anos, desempregada, mãe solteira, sabe o som do seu nome, sabe que é uma flor, mas não sabe desenhá-lo com letras. Não sabe o que é a contracepção, a sida, as doenças sexualmente transmissíveis.
  • Deolinda, 65 anos, mãe de Rosa e mãe de mais nove filhos. Filha de pai emigrante, que sabe existir, porque a avó de Rosa lho mostrou num daguerreótipo vindo do Brasil e que Deolinda não pode agradecer porque não sabe desenhar as letras que lhe permitissem formar as palavras: Obrigado Pai.
  • Laurinda, 78 anos, viúva, vive só, filha e mulher de emigrantes, do seu nome gosta do som e gosta que alguém lho desenhe. Não teve acesso à magra reforma ou subsídio (já o tentou, mas sem sucesso num país de sucesso). Trabalhou sempre desde que se conhece.
  • Angelina, 79 anos, viúva, mulher de emigrante, vive só. Não sabe de letras, de cinema, de teatro, de pintura, de fotografia ou de museus. Como as suas companheiras, de cujos olhos saem rios que não sabem onde vão desaguar, sabe rezar a um Deus que enche de dias as suas mãos vazias.
Mulheres corajosas, estas e outras, que tudo deram e a quem pouco ou nada dão.
Mulheres de quatro estações, que não viram a cara, que amam e sofrem, como quem cumpre um destino a que não se pode fugir.
Peregrinas duma existência, que vai cavando o deserto dos seus dias e ceifando suas clandestinas alegrias.
Todas amaram, umas foram amadas, outras não, algumas não sabem se o foram ou não.
Mas elas amam sempre; amam o pai, o irmão, o seu homem, o companheiro que não tiveram, o filho, o sobrinho, o neto, o afilhado, o aluno.
Estas também são as mulheres do meu país.
Mulher(es) sem voz, nem vez, para vós desenhei também este poema com amor:
Amo-vos
Nas tardes frias de Dezembro
Nas mimosas que florescem em Fevereiro
Nos dias quentes e noites de luar de Agosto
Nas carícias que fazeis ao milho e às uvas, soltando o vinho em Setembro
Na música do vosso rio
Nas estórias do viajante das sete partidas!
No sonho
No gesto suave e leve (que não tiveste) da mão dum pai (quando criança) sobre o cabelo.

Publicado originalmente no espaço Lugares d’aqui do Jornal de Penacova nº 56, de 15/01/2001, página 13.